quinta-feira, fevereiro 16, 2006

1º (PRIMEIRO)

Mais um dia ensolarado não conseguiria esconder o que fiz.
O som dos carros ao passar na rua, o brilho do sol invadindo as frestas da casa, o riso das crianças brincando na piscina... Nada disso conseguiria encobrir meu pecado.
Mas também, quem mandou ele chorar tanto? Aliás, quem mandou ele nascer homem??? Todo mundo sabe, até Deus sabe, que eu daria a minha vida por uma menininha linda, de olhos amendoados, pele branquinha com cheirinho de bebê. Mas não, ele tinha de nascer homem!
Imagina se eu ia querer outro homem como o pai dele, com aquele bigode nojento cheio de molho, com seus arrotos impertinentes à mesa, com aquela mania filha da puta de coçar o saco na frente de quem quer que seja! Nem morta!!!
Ele até que era bonitinho. Todos são bonitinhos quando pequeninos. Mas depois viram esses trastes, que arrotam e coçam o saco como se regras de etiqueta fossem coisas banais, supérfluas. Se fossem, ninguém as teria criado! Regras de etiqueta são para ser seguidas. Afinal, são regras!
Por isso eu preparei um banho para ele. Aqueci a água, coloquei essência de eucalipto, medi a temperatura com o pulso, enchi a banheira.
Eu sabia que ele queria comer, mas acha que eu deixaria ele sugar meu seio? Já não bastava eu me submeter àquele nojento do pai dele, eu também teria que deixar ele chupar meus peitos??? Disseram para eu dar mamadeira, mas ele era chato igual ao pai... Não queria tomar leite de vaca, já que tinha duas leiterias só para ele. E eu cada vez mais inchada, cada vez mais gorda, cada vez menos mulher...
A água da banheira emanava um cheiro refrescante de eucalipto, que penetrava minhas narinas e me mantinha lúcida. Mais uma vez medi a temperatura e percebi que estava boa. Dobrei-me ao berço, agarrei aquele corpinho trêmulo e o coloquei na banheira. Lavei delicadamente todas as dobrinhas, a orelha, o bumbum, a cabecinha. Mesmo assim, ele não parava de chorar.
Dediquei-me totalmente àquele momento; preparei com carinho aquele banho gostoso e mesmo assim ele não me dava valor. Achava que só porque é homem eu seria sua escrava!!! Achava que eu teria que estar à disposição 24 horas, quando ele quisesse comer, quando se sujava, quando chorava. Achava que eu era inferior a ele, assim como seu pai achava que era o "cabeça" da casa, o pai de família, aquele que põe comida na mesa, e por isso podia fazer o que queria. Podia até chegar bêbado, fedendo a conhaque e a perfume de vadia, sujo de baton. Podia chegar assim a qualquer momento e me acordar, me forçar a satisfazer seus desejos podres e depois dormir como se nada tivesse acontecido. Mas esse aqui não! Esse aqui não me dominaria...

Por isso eu fiz o que fiz.

Lembro-me do choro sendo abafado por água quente cheirando a eucalipto, das perninhas se debatendo, das mãozinhas agarrando meus braços, de como, pouco a pouco, as convulsões se tornaram mais espaçadas, do silêncio que dominou a casa depois que tudo terminou.
Só sobrou o silêncio e o cheiro de eucalipto.
Tirei ele da água, sequei, perfumei, vesti seu macacãozinho azul e o deixei no berço. Sem choro, sem gritos. Sem ter de limpar fralda suja, sem ter de amamentar.
Imaginei que agora eu poderia ter uma menininha. Sempre sonhei em ter uma bonequinha com cabelos de anjo.
Peguei minha mocinha do berço, retirei o macacão azul, extirpei aquilo que a tornava mais um homem que iria me subjulgar. Vesti um lindo vestidinho rosa, coloquei maria-chiquinha, perfumei com Mamãe & Bebê. Contei um conto de fadas, embalei-a em meus braços, disse o quanto eu a amava e como seria quando ela crescesse.

Minha mocinha, minha menina, meu bebê.

Às 19:15 ele chegou. Chegou e foi direto ao berço sem ao menos me dizer boa noite. Mas eu já estava cansada disso tudo. Estava cansada de ser humilhada, de ser sempre o 2º lugar. Sempre fui fraca, sempre fui dependente dele. Mas agora não! Agora eu tinha minha filhinha e juntas nós mudaríamos tudo. Eu já estava esperando por ele, esperando para acabar com meu sofrimento. Tinha descido até a garagem e pego uma pá velha e enferrujada que guardávamos sabe-se lá por quê. Fiquei sentada no quarto, próxima ao berço, quieta, aguardando o momento da libertação.
Ao ver minha filha, ele gritou. E eu, juntando todas as forças do meu corpo, abati aquele verme da forma como os vermes merecem morrer: bati uma, duas, dez vezes em sua cabeça, até que todos os movimentos daquele pedaço nojento de carne cessacem. Peguei minha filhinha, coloquei-a para dormir em minha cama e fui beber alguma coisa para relaxar. Afinal, agora eu era rainha e tinha até uma princesinha para me fazer companhia.
Por isso agora estou aqui, ajoelhada na privada, degustando o vômito amargo de quem encheu a cara de vodca e anfetaminas.
Por isso estou aqui há três dias. Só fico olhando o sol nascer e se pôr com minha filhinha no colo.

Minha mocinha, minha menina, meu bebê.

6 comentários:

Blogger Renata Marques disse:

Amor,

Apesar do conto ser triste, perturbador e denso, você escreve muito bem e com muita criatividade. Me lembra muito o Rubem Fonseca.

Não perca o "tesão" da coisa e atualize sempre, ok?

Bjão.
Te amo!

04:55  
Blogger Dani Marques disse:

Nossa!!
Tô passada! Muito bom, perturbador, intrigante, até meio asqueroso, mas só sendo assim tão bem escrito pra causar isso tudo!
É muito legal encontrar um psicólogo nas entrelinhas...
Freudiando! Com direito à inveja do pênis e tudo mais!!
Bom demais, cunhado!
Beijossss

09:32  
Anonymous Anônimo disse:

Muito bom, Lu. Parabéns. []s

11:04  
Anonymous Anônimo disse:

Nossa... no coments!!!

Assisti o filme na minha cabeça...
Ficou muito bom mesmo... Imaginei o estilo Tarantino em preto e branco... Exelente!!!

20:12  
Anonymous Anônimo disse:

Caralhos! Muito loco!
Coroajosa e Forte, pelo menos um dia na vida... Todo mundo deveria ser assim...

20:39  
Anonymous Anônimo disse:

Eh isso ai Siana-san, todo dia alguem devia matar o proprio filho (risos)

Lu, ficou muito loko, vc devia mandar pra gente publicar no site da treble.

Bom, falou,

Dan

23:34  

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